domingo, 3 de janeiro de 2010

As dimensões da Comunicação na implementação do ECA

Jornalista Edgard Patrício, da ONG Catavento, discute o papel da mídia na efetivação dos direitos da criança e do adolescente

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 18 anos em 2008. Vai e vem se discute a sua aplicabilidade, principalmente quando colocado à prova frente a atos extremos de violência cometidos por adolescentes. Mas, será que o Estatuto pode ser considerado implementado em toda sua plenitude? Ou sua aplicação parcial estaria condicionando a compreensão que se tem de sua eficácia? E qual o papel da Comunicação no processo de implementação do ECA? Esse artigo tenta lançar uma discussão sobre essa última dúvida, por meio da análise das dimensões da Comunicação que perpassam a formulação e aplicação do Estatuto.

Trabalhamos o viés entre Comunicação e ECA a partir de três dimensões: a dimensão corporativa, ou o que os próprios comunicadores podem fazer em torno da efetiva aplicação do Estatuto; a dimensão estatutária, ou a identificação na lei dos princípios de conduta de profissionais comunicadores e empresas de Comunicação, na garantia dos direitos de crianças e adolescentes; e a dimensão derivada, ou seja, o que é princípio da lei, não remete diretamente à conduta de profissionais e empresas de mídia, mas que aponta possibilidades de uma atuação efetiva da Comunicação na geração de oportunidades de um futuro melhor para a nossa infância.

A dimensão corporativa - A instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de julho de 1990, lança, de saída, um desafio aos profissionais comunicadores: como levar a boa nova à sociedade? Como trazer a uma discussão ampla às conquistas asseguradas pela legislação recém-nascida? E como contribuir para que o Estatuto fosse efetivamente utilizado em prol da garantia dos direitos de crianças e adolescentes? Ou seja, era necessário colocar o ECA na pauta das discussões, era necessário 'agendar' a sociedade para que o Estatuto fosse efetivamente aplicado.

No entanto, talvez os profissionais comunicadores bem intencionados, imbuídos dessas tarefas, tenham se deparado com um duro questionamento: será que nós mesmos estamos preparados para produzir essa comunicação? Não é à toa que em 1993 surge a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), em Brasília. Os seus eixos de atuação espelham bem esse momento. Por meio da mobilização, monitoramento e qualificação da produção da mídia realizada no Brasil, a ANDI lançou as bases de sua contribuição à real aplicação do Estatuto.

A ANDI, ao enumerar seus princípios de atuação, reconhece ser fundamental a criação de uma cultura de co-responsabilidade pela qualidade da informação pública como condição estratégica para a inserção da criança e do adolescente como personagens prioritários na agenda nacional de desenvolvimento humano e social. E deixa claro suas intenções ao declarar que embasa suas posições e práticas na Convenção Internacional dos Direitos da Infância e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Definida a atuação, era necessário compartilhar essa preocupação com os 'coleguinhas'.

E essa não é uma tarefa fácil, porque ainda inacabada. Suscitar uma mudança de compreensão no tratamento que o profissional comunicador dedica à criança e ao adolescente, principalmente aqueles que se encontram nas camadas empobrecidas da sociedade, requer um trabalho contínuo. Fazer ver que os termos 'trombadinha' ou 'pivete' mutilam crianças e adolescentes, ao criarem uma atmosfera de responsabilização plena, inadequada a indivíduos ainda em desenvolvimento, ainda hoje é uma tarefa necessária, embora cada vez mais esporádica.

Tamanho era o trabalho, dimensionado pela ANDI, que ela mesma impulsiona a formação da Rede ANDI Brasil - Comunicação pelos Direitos da Criança e do Adolescente. A Rede, incorporando a mesma tecnologia social de monitoramento e qualificação da mídia, desenvolvida pela ANDI, surge em 2000. Hoje, a Rede ANDI Brasil é constituída por onze organizações, em onze estados brasileiros, que trabalham para que os direitos de crianças e adolescentes virem pauta dos meios de comunicação. No Ceará, a tarefa foi assumida, desde 2004, pela ONG Catavento Comunicação e Educação.

A dimensão estatutária - A própria letra da lei, no caso o ECA, traz uma indicação clara sobre a importância da Comunicação na garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Em seu artigo 17, o Estatuto já preconiza que o "direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais". Se identificarmos a atuação dos meios de comunicação como uma janela por onde divisamos e construímos a imagem de nossas crianças e adolescentes, por meio dos valores, idéias e crenças inerentes à mensagem produzida por esses meios, reflexo dos valores idéias e crenças dos profissionais e empresários da mídia, a vinculação entre ECA e Comunicação é reforçada.

Mais uma vez, e agora em seu artigo seguinte, o 18, o Estatuto transparece essa relação ao afirmar que é "dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor". Os veículos de Comunicação podem exercer um papel fundamental nesse propósito. Basta lembrarmos que esses meios podem ser utilizados como denunciadores de arbítrios cometidos por entes públicos ou privados, quando de sua relação com crianças e adolescentes. Mas, é pesaroso reconhecer que os meios de Comunicação também colaboram, vide os programas policialescos, para a instalação de situações vexatórias relacionadas à conduta de crianças e adolescentes.

E são essas situações, constrangedoras, que infringem diretamente o artigo 71 do ECA, pelo qual a "criança e o adolescente têm direito à informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento". E remete à responsabilidade da ação empresarial essa tarefa, pois os "responsáveis pelas diversões e espetáculos públicos deverão afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição, informação destacada sobre a natureza do espetáculo e a faixa etária especificada no certificado de classificação". A discussão, levantada pelas empresas de Comunicação, e a peleja judicial em torno da contestação, pelas empresas, da classificação indicativa dos programas de televisão, são ações empresariais que depõem contra suas intenções perante a orientação do Estatuto.

Quando se trata das penalidades previstas no ECA para aqueles que desrespeitam a Lei, fica ainda mais visível a relação entre a Comunicação e o Estatuto. A infração do artigo 247 é passível de multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência, por "divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo à criança ou adolescente a que se atribua ato infracional": Incorre "na mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente".

Vale salientar que a identificação da criança e do adolescente, de que trata o artigo, pode ser feita por vias indiretas, procedimento praticado ainda com certa regularidade pelos veículos de Comunicação. É o caso da não-identificação do adolescente, mas da explicitação do endereço onde mora, da escola em que estuda, ou, identificação mais declarada, dos nomes de seus pais ou de algum parente próximo. Cabe destacar que o Estatuto está consciente de que a violação desse direito, pelos meios de Comunicação, tem caráter agravante, pela amplitude e disseminação que pode alcançar. Por isso, estabelece que se a violação for praticada "por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação". Uma clara alusão de que a liberdade de expressão não está acima de outros direitos.

A dimensão derivada - Mesmo que não estejam escritos na lei, os vínculos entre a aplicação do ECA e a Comunicação também podem ser apreendidos a partir de uma leitura derivada do que está explicitado no Estatuto. E um conjunto de artigos é orientador no sentido da compreensão dessa função derivada. Segundo o artigo 15, a "criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis". Em sua complementação, o artigo 16 afirma que o "direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; II - opinião e expressão".


A liberdade, relacionada aos aspectos de opinião e expressão, nos faz pensar sobre o espaço aberto pelos meios de comunicação à opinião de crianças e adolescentes. Quase sempre, essa opinião aparece por anunciadores, sejam pais, mães, professores ou irmãos mais velhos, e não diretamente. É como se houvessem categorias de opinião, em que quanto mais idade tiver a fonte, mais crível ela é considerada, esquecendo-se que a informação qualificada está relacionada à diminuição do espectro de intermediação que ela sofre para ser recebida. Engraçado que esse movimento de credibilidade da fonte, de acordo com sua idade, tende a arrefecer quando a curva chega aos idosos, eles também relegados quando da necessidade de informações qualificadas sobre a velhice.

Essa dimensão da relação entre Comunicação e ECA, a partir do direito à liberdade, vinculado à opinião e expressão, também passa por uma outra compreensão. Se os espaços abertos à criança e ao adolescente são restritos, em se tratando dos meios de Comunicação, por que não crianças e adolescentes se apropriarem, eles mesmos, dos princípios e técnicas da produção da comunicação e veicularem suas próprias mensagens, por meio de veículos próprios? A atuação de diversas organizações não-governamentais, que utilizam como metodologia a educação pela comunicação, vem demonstrando que isso é possível e que pode ser uma das saídas para a incomunicabilidade direta de crianças e adolescentes entre si e com a sociedade.

Mais que produzir Comunicação, os projetos desenvolvidos por essas organizações vinculam suas ações à dimensão da cidadania, porque o direito à comunicação é compreendido como um direito humano inalienável. E, ao mesmo tempo em que possibilitam que a meninada bote a boca no trombone, potencializando sua voz, predispõem o surgimento de alguns questionamentos. Ora, se o direito à Comunicação é um direito humano, se podemos também produzir Comunicação, se os meios de comunicação são concessões públicas, portanto a serviço da coletividade, por que esses meios de Comunicação muitas vezes têm uma orientação contrária a nossos direitos? Por que insistem em nos negar a expressão?

É pensando nessa dupla possibilidade, da abertura dos veículos de Comunicação à opinião de crianças e adolescentes, e de crianças e adolescentes eles mesmos produtores de sua Comunicação, que se vislumbra um outro desafio, e uma dúvida. Qual a orientação nos nossos cursos de Comunicação Social na formação dos futuros profissionais? Esses futuros profissionais estão conscientes de sua responsabilidade social, condição inerente à sua profissão? Eles estão sendo sensibilizados para a dimensão humana do Jornalismo, princípio da elaboração de qualquer matéria? E das relações éticas que se estabelecem na produção publicitária? Ou ainda estão sendo formados com a expectativa, apenas, de trabalhar num grande veículo de Comunicação, vinculado a uma empresa, atrelado a interesses individuais, seus próprios ou da própria empresa?

Os desafios que os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente nos coloca, a partir de uma mirada na situação vivenciada por crianças e adolescentes, e sua relação com a liberdade de opinião e expressão, pode ser um primeiro momento para se deter nesses questionamentos. E, quem sabe, nos aventurar pelo sinuoso caminho do direito à Comunicação.

*Jornalista, representante da ONG Catavento Comunicação e Educação no Conselho Gestor da Rede ANDI Brasil

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