sábado, 9 de janeiro de 2010

Até quando esperar dos mortos o alimento de cada dia?

Artigo de Valdênia Aparecida Paulino, advogada, pedagoga e professora de Direitos Humanos, reconhecida com o prêmio Personalidade 2003, concedido pela Defesa dos Direitos Humanos, por defender a criança e o adolescente e por denunciar a violência e a corrupção

Era uma manhã de novembro. Fazia sol. Eu descia o morro da favela para chegar no barraco da Sula para ter notícias de sua saúde. Sula ficou viúva quando o mais novo dos cinco filhos ainda era amamentado no peito. Morando em um pequeno barraco, cujas paredes eram uma mistura de papelão e madeiras velhas, criava seus filhos recolhendo e vendendo sucatas.

Eu descia para buscar notícias, pois na tarde do dia anterior Sula havia caído na rua, empurrando seu carrinho, quando teve mais um ataque de epilepsia. Estava já entrando na viela que dá acesso à sua casa quando encontrei Solange.

Solange, naquela época, era uma garota franzina, com 11 anos de idade, filha de mãe portadora de doença mental. Era a penúltima de seis filhos. Estava sempre alegre!
Radiante, me convidou para ir à sua casa, porque lá tinha coisas gostosas para comer. Assim, antes mesmo que eu respondesse, saiu me puxando pelo braço.

Enquanto atravessava um largo esgoto a céu aberto para chegar naquele barraco tão miserável, pensava no que ela me daria para comer, já que não era dia de feira e eles se alimentavam do que recolhiam quando os feirantes desmontavam as barracas.

Para minha surpresa, a mesa estava farta. Tinha farofa, frango assado, doces e pãezinhos frescos. Os irmãos brincavam de casinha com a mãe. Penteavam seus cabelos, davam pedaços de doce na sua boca... Era uma festa.

Quanto a mim, não tinha outra opção senão participar daquela festa. O pequeno barraco, ainda com chão de barro, contagiado com a alegria das crianças e da mãe que mais parecia uma delas na alegria, se transformara num salão de festas.

Sem poder recusar, comi a coxa, pois se tratava da melhor parte do frango e Solange fazia questão que fosse para mim. Enquanto comia, curiosa como estava, perguntei quem havia dado todos aqueles alimentos e os pães frescos.

Foi aí que Solange disse:
- Tia, todo sábado e domingo vai ter comida gostosa na nossa casa.- Que bom! – respondi, ainda querendo saber quem seria a pessoa tão generosa e solidária.

Então perguntei se poderia conhecer a pessoa que estava sendo tão “boa”.Um tanto desapontada, Solange respondeu que ainda não conhecia, pois haviam lhe dito que ela só poderia chegar depois que as pessoas já tevessem ido embora. Após um rápido momento de silencio e pensamento fixo, Solange me disse: "Mas você pode ir com a gente". Contudo, advertiu: "Mas a gente sai bem cedinho".

No outro sábado, cheguei às 7h no pequeno barraco para acompanhar Solange e dois de seus irmãos, mas eles já haviam saído. O cedo era mesmo bem cedo. Então resolvi ficar um pouco com a mãe.

Não eram ainda 8h quando Solange e os irmãos retornaram com uma sacola cheia de comida e uma garrafa de pinga na mão.

Antes mesmo de dar bom dia, perguntei: - O que é essa garrafa de pinga??!!Respondeu Solange: "Calma, tia! Meu irmão já vai levar pro moço da padaria, pra trocar por pão".

Eu, atônita com que estava vendo, continuava inquieta e querendo entender.
Foi aí que Solange revelou que a solidariedade não vinha dos vivos, mas dos mortos.Vila Formosa é um bairro da Zona Leste da cidade de São Paulo, onde fica um cemitério público. Para lá vão sobretudo os defuntos cuja família não tem dinheiro para pagar os serviços funerários. Mal cuidado e com muitas entradas, é um dos locais mais usados para ritos religiosos da umbanda e candomblé.

São muito comuns as oferendas nas sextas-feiras à noite.
Foi aí que entendi de onde vinha toda aquela comida e os pães frescos.

Naquele momento me faltou ar para respirar.
Enquanto isso, Solange, alegre me dizia que, naquela manhã, havia sido fácil pegar o ônibus, porque o motorista era bonzinho e deixou que ela e os irmaõs entrassem sem pagar a passagem.

Uma avalanche de pensamentos me passava pela cabeça.
Entre eles, a certeza de aquela realidade precisava mudar.
A certeza de que Solange e sua família eram meus semelhantes.
A certeza de que não poderia continuar seguindo sem considerar que crianças sobrevivem de alimentos deixados nos despachos de cultos religiosos.
A certeza que aquela mistura de indignação, tristeza e admiração me levaria a tomar atitudes que pudessem ajudar a tornar os vivos mais solidários.

Obrigada, Solange, por me dar a melhor aula de direitos humanos.
Essa vivência se deu em novembro de 1991.

Sobre Valdênia Aparecida Paulino: A vida de Valdênia Paulino, uma das principais defensoras dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, é dedicada inteiramente à luta pelos direitos dos outros, pautada em compromisso e persistência na defesa dos direitos humanos e com atuação destacada na denúncia de violência e corrupção. É advogada, pedagoga, professora de Direitos Humanos e militante do Centro de Direitos Humanos Mônica Paião Trevisan, conhecido como CEDECA Sapopemba. Nascida em Minas Gerais, Valdênia mudou-se com a família para São Paulo na década de 1970 e, morando na periferia, iniciou suas atividades voltadas para comunidade. Em 2003 foi premiada como Personalidade pela Defesa dos Direitos Humanos.

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